Memória e queijo — como se sabe — não se casam, não se cosem, não se combinam. Vem de longe a crença popular que assim os separa. Comer queijo enfraquece a lembrança das coisas.
Queijo ou laticínio. Lá está, por exemplo, na obra clássica do seiscentista padre Manuel Bernardes, Nova floresta (Lisboa, 1708, t.2, título 5, p.200-201): “Há também memória artificial, da qual uma parte consiste na abstinência de comeres nocivos a esta faculdade, como são laticínios, carnes salgadas, frutas verdes e vinho, sem muita moderação, e também o demasiado uso do tabaco”.
E porque assim é, porque o comedor de queijo facilmente esquece as coisas, o povo, através da conhecida expressão (que vale como verdadeiro provérbio), nos adverte: “Quem esquece come queijo”, entendendo-se o mesmo que “quem esquece (é porque) come queijo” — dito corrente em vários pontos do Brasil, citado por Lindolfo Gomes em Minas, e também por mestre João Ribeiro no seu “O folclore” (Porto, 1919, p.271) — com o seguinte esclarecimento: “É crença popular que os laticínios, e normalmente o queijo, são alimentos que prejudicam a memória”.
Pereira da Costa, em seu notável Vocabulário pernambucano — citado em Revista do Instituto Histórico Pernambucano, v.34, Recife, 1936) — escreve isto no verbete Queijo: “Comer casca de queijo, diz-se de quem come se esquece do que faz e do que diz” — crença antiga que teimosamente persiste no norte e nordeste.
No livro do folclorista cearense Eduardo Campos, Medicina popular (2ª ed. Rio de Janeiro, 1955, p.79): “Não se deve comer casca de queijo. Quem assim procede ficará 'esquecido', de memória fraca”.
Não se pense, porém, que só quem do queijo lhe come a casca é que fica assim desmemoriado. Mesmo lá pelo norte, basta que se coma o queijo, uma fatia de queijo, para que esfrie e amoleça a memória. Leio isto em José Lins do Rego, em seu livro Meus verdes anos (Rio de Janeiro, José Olímpio, 1957): “Botava a cartilha e a tabuada por baixo do travesseiro para ver se entrava alguma coisa na minha cabeça. E não comia queijo. Queijo fazia ficar rude...”.
Rude, aí vale o mesmo que bronco, bruto, desmemoriado.
Aliás, bruto fica, em Portugal, quem come queijo. Nas suas Locuções e modos de dizer usados na província da Beira Alta (Lisboa, 1924, p.20), José da Fonseca Lebre registra o caso: “Homem, parece-me que tu comes muito queijo. Em certos dias parece-me bruto. Então, é lá coisa que se compreenda, um disparate desse lote?”.
Gente de memória boa, segundo o povo, tem memória de anjo.
Francisco Manuel de Melo, em sua obra póstuma Feira de anexins (2ª ed. Lisboa, 1916, p.111), ao elaborar suas desengraçadas metáforas sobre a memória, escrevia, em forma dialogada: “— Você está em França, tem memória de galo. / — Tome anacardina. / — Basta, que eu não como queijo. / — Se eu o comera, já pensava que me morria.” Repare-se no trocadilho infamezinho — me morria (memória)...
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