Já não se almoça, come-se qualquer coisa.
Nos supermercados dos grandes centros urbanos, há gente a pedir aparas de frango e de fiambre.
No interior do País, famílias insuspeitas recorrem aos cabazes alimentares distribuídos pelas câmaras municipais.
Onde antes se tirava ao supérfluo hoje tira-se à comida.
Os filhos, a creche, as distâncias casa-trabalho, o empréstimo, os ordenados baixos, os aumentos inexistentes, as miragens do amanhã que tarda, não garantem a dignidade nem dão asas aos desejos.
Mas os salários de miséria convivem amiúde com expectativas de grandeza.
Marcas, empresas, estratégias de marketing, bancos, governantes, artistas, modelos, futebolistas, convencem-nos de que podemos ter a vida que não conseguimos pagar.
Dizem-nos, insinuam, que podemos ter as férias do patrão.
O gabinete e o bem bom.
A casa, o carro e o relógio do chefe.
Ir onde ele vai, frequentar o mesmo restaurante, o ginásio, o SPA, o que tiver de ser.
Ler o que ele lê para assim estarmos mais próximos da cadeira do poder.
Se ele pode porque é que eu não posso?! – Perguntamos nós os dois, indignados.
Grande civilização esta que democratiza a ilusão, mas esconde o preço para sustentar a miragem.
No fundo, governos, empresas, bancos, dão-nos crédito ao sonho, mas dizem-se indisponíveis para ajudar-nos a pagar a realidade de todos os dias.
E nós vamos na conversa.
Porque queremos ser cada vez maiores e melhores.
Belos, giros, modernaços, actualizados, ambiciosos.
Dantes, no tempo dos nossos avós, até a ambição era uma coisa feia, mal vista e frequentada.
Tresandava a falta de escrúpulos.
Hoje é condição obrigatória em anúncios de emprego no jornal para os quais se exige 12 anos, doutoramento em universidade estrangeira, brevet de piloto, carta de marinheiro, carta de condução, e tudo o mais que o candidato nunca pode imaginar.
Buscamos o amor e a paixão em livros de ocasião, as competências em manuais, as curas em técnicas orientais.
Por vezes, no local de trabalho, dizem que somos indispensáveis.
Falam de motivar equipas, libertar o génio que há em nós.
Dão-nos cursos para nos tornarmos trabalhadores multi-qualquer-coisa, flexibilizar ritmos, encarar a insegurança na profissão como um desafio às nossas capacidades.
Mas na mercearia ou no supermercado, ao final do dia, ainda não aceitam elogios como pagamento, pois não.
Um dia, dizem-me alguns, ainda crédulos, isto vai estourar como uma panela de pressão.
Lamento desiludir, mas não vai nada.
Já estoirou e está pronto a servir a quem tem direito de nos comer.Ficcionamos a vida como uma série de televisão (desesperadas, médicos, enfermeiras, etc.).
E gostamos de nos ver assim.
Sempre à espera do próximo episódio.
Do final feliz que não vem com a realidade.
Até que o fim chegue, teremos sempre esta sensação de escravidão no nosso corpo …
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