18 outubro 2007

E quando existem vidas para além das nossas ...

Uma refeição e um ombro para os sem-abrigo de Lisboa

Dona Tina mora em "casa de uma senhora" mas não sabe o que faria se não pudesse contar com a merenda que todas as noites recebe da Comunidade Vida e Paz. Aparece de colar ao pescoço e mala ao ombro, distribui beijinhos aos voluntários e ri-se muito, com um sorriso onde faltam muitos dentes. Fernando traz três ou quatro sacos onde transporta toda a sua existência e tem um rádio portátil que toca, em altos berros, "ó careca tira a boina". E Fernando a dançar, desajeitado. Luís e Manuel partilham um buraco em plena Praça de Espanha. Um buraco esconso e mal-cheiroso que agora é a casa deste par, de roupas imundas e cigarro sempre aceso. "Não se esqueçam de nós", diz Luís, enquanto vira costas e desaparece dentro do buraco.

Na Comunidade Vida e Paz garantem que não se esquecem. Todas as noites, três carrinhas circulam pela cidade de Lisboa para levar algum conforto aos sem-abrigo. "É muito mais fácil do que se pensa chegar a sem-abrigo. Se não se tiver uma estrutura familiar, às vezes basta um divórcio ou ficar sem emprego. As pessoas não estão preparadas para lidar com a situação, tomam uma decisão errada, é uma bola de neve", explica a voluntária Elisabete Cardoso.

Um levantamento da Câmara de Lisboa, realizado em 2000, dava conta de pelo menos 1275 pessoas que moravam em permanência nas ruas da capital. A estes juntam-se aqueles que, tendo um tecto, não têm, no entanto, rendimentos suficientes para assegurar a sua subsistência, pelo que estão dependentes de ajudas. De acordo com o Inquérito às Condições de Vida e Rendimento realizado em 2005, 19% da população portuguesa vivia "em risco de pobreza". Este valor correspondia à proporção dos habitantes com rendimentos anuais por adulto inferiores a 4321 euros (cerca de 360 euros por mês). Os idosos com 65 ou mais anos são o grupo de mais risco, mas se há coisa que as pessoas que trabalham nesta área já aprenderam é que ninguém está a salvo. Isabel Jonet, do Banco Alimentar Contra Fome, admite que no ano passado 216 mil pessoas beneficiaram desta ajuda em todo o País.

"Comunidade Vida e Paz, viemos trazer-lhe comida." O anúncio é quase sussurrado pelo voluntário, que aguarda um movimento debaixo dos cartões. Uma cabeça surge por entre o cobertor. A mão estendida para agarrar o saco. Duas sandes, dois iogurtes, uma laranja. A voz ensonada derrama um obrigado e logo o corpo desaparece por entre os caixotes.

"Às vezes nem acordam", conta o voluntário Pedro Melo. Mas isso não impede o trabalho das equipas. Os locais onde há sem-abrigo estão assinalados nas suas rotas - nos recantos dos prédios, por baixo de escadarias, em arcadas protectoras. Mais cedo ou mais tarde, a carrinha aparece. Às vezes nem acordam e o saquinho fica lá, como um presente deixado por um anjo para um despertar melhor. Outras vezes, o sono é interrompido para conversar, pedir um cigarro, perguntar se por acaso não terão um casaco, calças, sapatos. Os voluntários não se esquivam aos abraços nem às conversas. Estão atentos aos rostos novos, querem saber as suas histórias e estão sempre dispostos a ouvir. Às três da manhã, nos Restauradores, um homem insiste em contar a sua vida. Mais de meia hora depois, ainda todos o ouvem. "Se não formos nós com quem vai ele falar?"


Fonte:
http://dn.sapo.pt/2007/10/17/sociedade/uma_refeicao_e_ombro_para_semabrigo_.html


Deixar a rua é difícil, mas é possível



Constantino não chegou a morar na rua. Tinha uma roulotte, era motorista e tocava bateria. Tinha a vida mais ou menos organizada até um acidente o ter arrastado para o desemprego e para o álcool. "Bebia muito vinho branco", reconhece Constantino, 47 anos, há quase um ano a residir na Quinta do Espírito Santo, um dos três centros de recuperação para sem-abrigo da Comunidade Vida e Paz.

O trabalho na rua é, afinal, apenas um pretexto para estabelecer contacto. Depois de conquistada a confiança e conhecidas as histórias, os voluntários vão dando a mão àqueles que mostram verdadeira vontade de sair da rua e que, com a ajuda de técnicos, são acompanhados num processo de reabilitação e reintegração social.

Os centros estão sempre cheios, mas a tarefa não é fácil. "A vida na rua deixa muitos danos", explica Alfredo Martins, teólogo e director da Quinta do Espírito Santo, perto do Sobral de Monte Agraço. Às sequelas no corpo e no espírito, juntam-se os maus hábitos adquiridos - é preciso aprender a gerir o tempo, respeitar a autoridade, partilhar com os outros, trabalhar, viver em comunidade. Deixar as drogas (em alguns casos) e o álcool (muitos). A formação profissional e a reintegração são as fases seguintes. "Há pessoas, mais velhas ou com problemas mentais, para quem a reinserção não é a melhor solução. Algumas pessoas não conseguem, muitas são integradas, mas acabam por voltar. Mas o sucesso, nem que seja de uma pessoa só, é algo incomensurável."

Fonte:
http://dn.sapo.pt/2007/10/17/sociedade/deixar_a_e_dificil_e_possivel.html

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