Por aqueles dias saiu um édito da parte do Imperador César Augusto, para ser recenseada toda a terra. E iam todos recensear-se, cada qual à sua própria cidade de origem…
Ora todo este movimento de gente representou um acréscimo de trabalho para os postos de fronteira, em particular para os serviços alfandegários. As pessoas viajavam em cavalos, burros e camelos, a pé ou de carroça. Havia quem não levasse quase nada, passando rapidamente por todas as formalidades. Outros, no entanto, iam mais carregados, cheios de comida e bebida, com tachos e panelas, muita roupa, e até prendas para os seus familiares. O tabaco e as bebidas ainda era o que dava mais trabalho, claro, pois as taxas a aplicar eram complicadas de calcular.
Num destes postos, na fronteira ente a Galileia e a Judeia, o ambiente não era nesses dias o melhor: fazia frio e desagradável lá fora, cada vez havia mais que fazer, e os aduaneiros andavam cansados e irritadiços. Uma das coisas que mais incomodava era as excepções às leis fiscais, que tinham que ser resolvidas uma a uma. Ainda há poucos dias tinha passado por ali uma família vinda de Nazaré: o homem chamava-se José, era carpinteiro de profissão, e tinha a papelada em ordem. Mas o problema era a mulher, Maria de seu nome. Nem passaporte, nem certidão de casamento, nem nada. Enfim, lá a deixaram passar, confiados na palavra do marido. Se não estivesse num estado tão avançado de gravidez, tinham-na provavelmente mandado para trás, para a próxima saber tratar bem das coisas.
Nessa manhã, apareceu outro processo complicado: três homens montados em camelos, vestidos de modo sumptuoso e com passaporte diplomático. Vinham carregados de ouro, e traziam também incenso e mirra. Mesmo com toda a aparência de serem ricos, pelo menos um deles tinha traços inconfundivelmente árabes, pelo que era preciso ter cuidado. Pagaram no entanto os impostos devidos, sem sequer pestanejar. Onde foram evasivos foi no motivo da viagem. “Vamos para Belém”, diziam, sem explicar muito mais. Um deles ainda falou numa estrela brilhante no céu, mas nada daquilo parecia fazer muito sentido. Enfim, tinham tudo em ordem, lá seguiram viagem.
A história da estrela voltou a aparecer nessa noite, quando, pouco antes da hora de fechar, apareceram para passar a fronteira uns pastores, com as suas cabras e ovelhas. O funcionário, já cansado, nem quis ir ver aos livros se era preciso pô-las de quarentena: as leis estavam sempre a mudar, pois os governantes volta e meia mudavam de ideias. “Sigam”, disse aos pastores, “e levem-me essa bicharada para longe da minha vista! E já agora, para onde é que vão?”. “Não sabemos bem”, respondeu aquele que parecia o líder, “disseram-nos para seguir aquela estrela brilhante que se vê no céu!”. “Já cá faltava esta história de novo!”, pensou o técnico. “Será que este ano a festa começou mais cedo, e esta gente já vem bebida?”. Mas como queria fechar rapidamente o posto e ir para casa, mandou-os seguir.
Na manhã seguinte os pastores regressaram. Vinham com um entusiasmo esfuziante, embora ainda fosse cedo. Não podia ser da bebida, portanto! E falavam de um recém-nascido que tinham encontrado, deitado num pobre estábulo de animais mas rodeado de reis e de presentes, numa paz digna de deuses. E diante da alegria daquela família modesta mas feliz, os pastores tinham percebido que passavam o tempo a lamentar-se e a falar do que estava mal ou que faltava, em vez de desfrutar e apreciar as tantas coisas boas à sua volta. Vinham impressionados também com a atitude dos reis que ali tinham encontrado: sem prepotência nem vaidade, pareciam disputar-se no serviço, no empenho pelo bem-estar de todos, e na preocupação pelos seus súbditos que tinham deixado longe. “Estranha realeza aquela!”, comentavam os pastores.
E nos dias seguintes as pessoas que passavam por aquele posto fronteiriço continuavam a falar daquele nascimento, na simplicidade e ternura daquela família ao mesmo tempo tão “normal” mas tão diferente. Pelo posto passavam ricos e pobres, coxos e cegos, comerciantes e desempregados, novos e velhos. Muito diferentes uns dos outros, mas todos igualmente marcados pela visita àquele estábulo de Belém. Não que, por um golpe de magia, a sua vida se tivesse tornado mais fácil; mas a forma de encarar cada dificuldade e cada problema parecia ter mudado, a sensação geral era que o próprio Deus, antigamente distante lá nos céus e nos altares, se tinha agora feito presente no coração de cada um, desafiando-os a olhar para as coisas simples do dia-a-dia com novos olhos e com um novo sorriso.
Pouco a pouco, até o ambiente naquela alfândega começou a mudar: todos os funcionários pareciam agora mais cordiais e prestáveis; as quezílias e os comentários menos simpáticos diminuíam a olhos vistos; e cada um descobria no outro qualidades que não conhecia antes, aceitando também os seus defeitos com maior naturalidade. As próprias famílias dos aduaneiros estavam surpreendidas com tal transformação. E todos se perguntavam se a dita família regressaria de Belém por aquela estrada.
Uma manhã, finalmente, tiveram a resposta, ao encontrar um pequeno envelope enfiado debaixo da porta. “Passámos esta madrugada por aqui. Sou José, o carpinteiro, e comigo viaja a Maria e o nosso recém-nascido Jesus. Desculpem não termos esperado, mas a viagem ainda é longa, e não tínhamos nada a declarar, fomos dando a parentes e necessitados os presentes que nos ofereceram em Belém. Muito boas Festas! Ah, e a Maria pede-me para vos dizer que não esquecerá a confiança com que a trataram. Sempre que precisarem de ajuda, disponham. E deixamos aqui uma foto de Maria, que tirámos ao passar pela Atalaia. Até à próxima!”. E toda a gente naquele posto, quando olhava a imagem da Senhora da Atalaia, se lembrava daqueles dias, e daquele modo diferente, alegre e descomplicado, de viver a vida.
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