... não gostavas que te fizessem a ti.
Este é um dos muitos lemas que norteiam a conduta individual de quem vê outras pessoas a desrespeitar este princípio de vida.
Hoje ao almoço entrou uma rapariga nova no restaurante onde estava a almoçar.
A rapariga dirigiu-se aos clientes, sem pedir autorização ao dono do restaurante, e a cada um deles pedia-lhes para lhe darem uma sandes para comer.
Um dos empregados de mesa gritou com ela, em frente dos clientes, que ela nem devia estar ali a pedir fosse o que fosse sem ter pedido, primeiro, permissão para entrar no restaurante.
O cliente à qual ela se dirigiu aceitou em ajudá-la e disse-lhe que pagava-lhe uma sandes, ao mesmo tempo que lhe indicava que teria que se dirigir primeiro ao balcão na entrada para pedir tal refeição modesta.
A rapariga agradeceu-lhe e foi ao balcão, onde no qual contou que um dos clientes lhe tinha oferecido uma sandes e que o mesmo iria depois lhe pagar.
O empregado que estava atrás do balcão, com muitos maus modos e extremamente antipático, gritou à rapariga de que ela nem devia se ter atrevido a pedir-lhe a sandes porque sabia que tinha entrada à socapa no interior do restaurante sem a sua permissão, aproveitando o facto de ela estar ali para lhe dar ordem de saída (O habitual "Vai para rua, malandra!").
Entretanto, a rapariga confusa com a resposta e a atitude do empregado, virou-lhe as costas e regressou à mesa do cliente que lhe tinha dito que lhe iria pagar a sandes.
Quando chegou perto do tal cliente, só teve tempo para lhe explicar que tinha ido pedir uma sandes ao balcão, mas que o empregado se recusou a dar-lhe, e no momento em que estava a meio desta sua justificação, o empregado do balcão agarrou-lhe e puxou-a através do seu braço, e voltou a falar em voz alta para ela insistindo que aquele lugar não era para pedintes e para que fosse para a rua o mais rapidamente possível porque estava a incomodar os clientes que estavam a almoçar.
A rapariga envergonhada e perseguida pelo empregado do balcão só teve que se resignar e acabou por sair do restaurante com o estômago na mesma em que entrou.
Curiosamente, tive que me levantar da mesa do restaurante onde estava a almoçar e dirigi-me à rua.
Na rua consegui interceptar a rapariga, e acabei por lhe perguntar algumas coisas.
Descobri que a rapariga trazia umas revistas a dizer CAIS, que falava muito dificilmente o português, que era oriunda da Bulgária, que tinha sido veterinária, que só procurava mesmo naquele momento era uma sandes e não dinheiro, que tinha entrado no restaurante num acto de desespero porque a fome já a tinha posto num estado de loucura, que a vida que tinha sonhado num país que lhe tinham falado 1.000 maravilhas afinal estava a ser um inferno, que tinha vários problemas diários em sobreviver, etc., sendo que aqui o etecetera era o relato de 587.096.234.860.398.460.392.846.098.543 telenovelas com um final infeliz e desconhecido,.
Este facto não vem retratado em nenhum livro, não é referência de nenhuma reportagem, não consta em nenhum estudo académico de doutoramento, não se encontra registado em nenhuma estatística nacional que retrate verdadeiramente o que se passa na nossa sociedade, não é merecedor de uma resolução de qualquer ministério, instituição de solidariedade social ou governo, etc., mas ......
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para mim, hoje, foi mais importante o seu drama do que tudo aquilo que se esqueceu da sua existência, o que só prova que algo de muito mal se vai instalando silenciosamente porque ninguém se preocupa verdadeiramente em dar voz às mulheres que mais precisam da nossa ajuda.
Curiosamente, a meio tarde recebi um telefonema de uma amiga, no qual a conversa conduziu a um convite da outra parte para assistir a uma peça de teatro, ao qual recusei de forma diplomática e simpática.
Aliás, para que é que serve termos acesso e conhecimento de tanta cultura se, no final de contas, quando uma pobre desgraçada nos aparece, assim de repente, nas nossas vidas e nem sequer lhe damos um mínimo de hipótese, tendo em conta a nossa educação e humildade cultural, ao ponto de compreender a situação em que tal mulher se encontra, chegando a pedir ajuda para comer ...
Haveria milhares de teatros e telenovelas e outras mais expressões culturais em que poderia ter estado ou assistido, mas o que se passou hoje, em que fui personagem secundário a contracenar com uma personagem principal que nunca virá a um palco ou pisar os estúdios de televisão ou de cinema, deu-me a discernidade e a clareza de espírito para reconhecer que a vida real de uma mulher tem um valor tão importante para a humanidade que não se pode ignorar a sua existência e simplesmente esquecermo-nos dela através de outros estímulos artificiais, como por exemplo a ida a um teatro ou a qualquer coisa do género, quando existe uma mulher a sofrer com uma história ainda para contar e terminar ...
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