24 janeiro 2009

O que é um peido para quem está todo cagado? (A Crónica de um Povo)

A expressão do título é
conhecida de todos, mas o texto que a
originou é menos.
É uma obra de Luis Fernando
Veríssimo sobre a obra veríssima que
ele fez numa viagem para Miami.

Aeroporto Santos Dumont,
15:30.

Senti um pequeno mal-estar
causado por uma cólica
intestinal, mas nada que uma
urinada ou uma barrigada não aliviasse.
Mas, atrasado para
chegar ao ônibus que me levaria para o Galeão, de
onde partiria o vôo para Miami,
resolvi segurar as pontas.

Afinal de contas são só uns 15
minutos de busão.

'Chegando lá, tenho tempo de
sobra para dar aquela mijadinha
esperta,
tranqüilo, o avião só sairía às
16:30'.

Entrando no ônibus, sem
sanitários. Senti a primeira
contração e tomei consciência de
que minha gravidez fecal chegara
ao
nono mês e que faria um parto de
cócoras assim que entrasse no
banheiro do aeroporto.

Virei para o meu amigo que me
acompanhava e, sutil falei:

'Cara, mal posso esperar para
chegar na merda do aeroporto porque
preciso largar um barro.'

'Nesse momento, senti um urubu
beliscando minha cueca, mas botei a
força de vontade para trabalhar e
segurei a onda.'

O ônibus nem tinha começado a
andar quando, para meu desespero, uma
voz disse pelo alto falante:
'Senhoras e senhores, nossa viagem entre
os dois aeroportos levará em
torno de 1hora, devido a obras
na pista.'

Aí o urubu ficou maluco querendo
sair a qualquer custo. Fiz um
esforço hercúleo para segurar o
trem merda que estava para chegar na
estação anus a qualquer
momento.

Suava em bicas. Meu amigo
percebeu e, como bom amigo que era,
aproveitou para tirar um
sarro.

O alívio provisório veio em
forma de bolhas estomacais,
indicando que pelo menos por
enquanto as coisas tinham se acomodado.

Tentava me distrair vendo TV,
mas só conseguia pensar em um
banheiro,
não com uma privada, mas com um
vaso sanitário tão branco e tão limpo
que alguém poderia botar seu
almoço nele. E o papel higiênico
então: branco e macio, com
textura e perfume e, ops, senti um volume
almofadado entre meu traseiro e o
assento do ônibus e percebi,
consternado, que havia
cagado...

Um cocô sólido e comprido
daqueles que dão orgulho de pai ao seu
autor.

Daqueles que dá vontade de ligar
pros amigos e parentes e
convidá-los
a apreciar na privada.

Tão perfeita obra, dava pra
expor em uma bienal.

Mas sem dúvida, a situação tava
tensa. Olhei para o meu amigo,
procurando um pouco de piedade, e
confessei sério:

'Cara, caguei!'

Quando meu amigo parou de rir,
uns cinco minutos depois,
aconselhou-me a relaxar, pois
agora estava tudo sob controle.

'Que se dane, me limpo no
aeroporto', pensei.

'Pior que isso não fico'.

Mal o ônibus entrou em
movimento, a cólica recomeçou
forte. Arregalei os olhos,
segurei-me na cadeira mas não pude
evitar,
e sem muita cerimônia ou
anunciação, veio a segunda leva de merda.

Desta vez, como uma pasta morna.
Foi merda para tudo que é lado,
borrando, esquentando e melando a
bunda, cueca, barra da camisa,
pernas, panturrilha, calças,
meias e pés.

E mais uma cólica anunciando
mais merda, agora líqüida, das que
queimam o fiofó do freguês ao
sair rumo a liberdade.
E depois um peido tipo bufa, que
eu nem tentei segurar. Afinal de
contas, o que era um peidinho
para quem já estava todo cagado.....

Já o peido seguinte, foi do tipo
que pesa. E me caguei pela quarta
vez. Lembrei de um amigo que
certa vez estava com tanta caganeira que
resolveu botar modess na cueca,
mas colocou as linhas adesivas
viradas
para cima e quando foi tirá-lo
levou metade dos pêlos do rabo junto.

Mas era tarde demais para tal
artifício absorvente.
Tinha menstruado tanta merda que
nem uma bomba de cisterna poderia me
ajudar a limpar a
sujeirada.

Finalmente cheguei ao aeroporto
e saindo apressado com passos
curtinhos, supliquei ao meu amigo
que apanhasse minha mala no
bagageiro do ônibus e a levasse
ao sanitário do aeroporto para que eu
pudesse trocar de roupas.

Corri ao banheiro e entrando de
boxe em boxe, constatei falta de
papel
higiênico em todos os
cinco.

Olhei para cima e blasfemei:
'Agora chega, né?'

Entrei no último, sem papel
mesmo, e tirei a roupa toda para
analisar
minha situação (que concluí como
sendo o fundo do poço) e esperar
pela
minha salvação, com roupas
limpinhas e cheirosinhas e com ela uma
lufada de dignidade no meu
dia.

Meu amigo entrou no banheiro com
pressa, tinha feito o
'check-in' e ia correndo tentar
segurar o vôo.
Jogou por cima do boxe o cartão
de embarque e uma maleta de mão e
saiu antes de qualquer protesto
de minha parte. 'Ele tinha despachado
a mala com roupas'.
Na mala de mão só tinha um
pulôver de gola 'V'.

A temperatura em Miami era de
aproximadamente 35 graus.

Desesperado comecei a analisar
quais de minhas roupas seriam, de
algum modo, aproveitáveis.
Minha cueca, joguei no lixo. A
camisa era história.
As calças estavam deploráveis e
assim como
minhas meias mudaram
de cor tingidas pela merda. Meus sapatos
estavam nota 3,
numa escala de 1a 10.
Teria que improvisar.
A invenção é mãe
da necessidade, então transformei uma simples
privada em uma
magnífica máquina de lavar.
Virei a calça do lado avesso,
segurei-a pela barra, e mergulhei a
parte atingida na água. Comecei a
dar descarga até que o grosso da
merda se desprendeu. Estava
pronto para embarcar.

Saí do banheiro e atravessei o
aeroporto em direção ao
portão de embarque trajando
sapatos sem meias, as calças do lado
avesso e molhadas da
cintura ao joelho (não exatamente limpas) e o
pulôver gola 'V', sem
camisa.

Mas caminhava com a dignidade de
um lorde.

Embarquei no avião, onde todos
os passageiros estavam
esperando o 'RAPAZ
QUE ESTAVA NO BANHEIRO' e atravessei todo o
corredor até o
meu assento, ao lado do meu amigo que sorria.

A aeromoça aproximou-se e
perguntou se precisava de algo.

Eu cheguei a pensar em pedir 120
toalhinhas perfumadas para
disfarçar o cheiro de fossa
transbordante e uma gilete para cortar os
pulsos,
mas decidi não pedir:

'Nada, obrigado.'

Eu só queria esquecer este dia
de merda. Um dia de merda...


Autoria: Luis Fernando Veríssimo.

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